O Abismo entre Liberdade e Sociedade
Sobre a eficácia da reclusão.
Fabio Bottrel
9/23/20255 min read
Tendo em vista que a única mudança possível é a de dentro para fora, a sanção se torna uma criação ilusória da sociedade. É simples perceber com exemplos cotidianos, se pedisse para que os senhores parassem de ler esse texto nesse exato instante, a ordem poderia ser acatada, mas o indivíduo não “regenerou” da vontade de ler e assim que possível continuará lendo, portanto, toda ação sob coação é destituída de juízo de valor preponderante, bem como a sua ordem. Digo juízo de valor preponderante todo aquele que advém de forças internas, da consciência e comportamento natural do indivíduo. Todo aquele oriundo de produtos externos, por mais profundos que sejam, são falsos. Podemos perceber tal circunstância na obra A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar, quando um rapaz chamado Vicente é sequestrado por um cirurgião plástico que troca toda a sua pele e o transforma em mulher, Sofia. Na cena em que o personagem olha para o espelho e se vê como Sofia, percebemos o espelho a aliená-lo ao reflexo externo, pois o interno ainda reflete o ser, assim, ao encontrar sua ex-namorada, ele, no corpo de Sofia, diz: "Eu sou o Vicente." Sofia nunca poderia se tornar Vicente, pois tal como a matéria bruta é um produto de forças externas que não se amalgamam às forças internas. Assim é a sanção. Para ser mais visual, o pensamento é análogo à espécie de fagocitose social, processo adaptado da biologia cujos meandros se ligam diretamente à imunologia.
No esteio desse desenvolvimento, nota-se que privar o indivíduo do objeto de desejo se torna um paradoxo para a regeneração, tal como privar os senhores do texto não eliminaria a vontade de ler, pelo contrário. Tendo em vista um cidadão que vá a julgamento por estar desajustado, alheio ou alienado socialmente, privar-lhe da sociedade (ou da liberdade) seria reforçar o comportamento. Dessa forma, quanto maior a pena, menor a regeneração.
Seguindo a Teoria Tridimensional do Direito, de Miguel Reale, que se alicerça por um aspecto normativo, de Direito como ordenamento; um aspecto axiológico, de Direito como valor de justiça e por um aspecto fático, a cuidar de sua eficácia; pelo descrito acima, há de se pensar que esta última não possa ser dogmática, sob pena de ser eliminada. Com o desenvolvimento da psicologia chegou o tempo de perceber que o Direito ao longo da história caminhou em linha reta mancando de uma perna, vestindo conceitos antigos com nova roupagem e criando um Direito atual para um mundo que não existe mais, para um mundo tão fragmentado que deixa de ser a cada dia, como explica Edgar Morin em A Cabeça Bem Feita.
Expandindo a crítica para além do olhar desse indivíduo, quando este é o baluarte do problema que se enraíza acima da mente, o mal praticado por ele é um sintoma de desajuste social, pois a finalidade que lhe deu causa não é o mal outrora aferido, mas a busca pelo ajuste social que lhe foi privado. Assim, um homem que assalta e comete um assassinato, o homicídio não foi o fim, o objeto de desejo que lhe daria o ajuste almejado, sim. Sabemos não ser a pobreza a causadora da violência, mas a desigualdade a caminhar ao lado da injustiça, assim, há uma estrutura segregadora tal como manipuladora a nos proporcionar uma ilusão de livre-arbítrio sobre nós mesmos. Para perceber tal condição pergunto aos senhores, diante do cenário de escasso sabores cervejeiros - que agora está efervescente e transformador - se gostaram do primeiro gole de cerveja que tomaram? Então porque bebemos até gostar? Se de fato tivéssemos livre-arbítrio a cerveja não faria parte do cardápio da grande maioria pelo gosto peculiar, acontece que não somos inteiramente donos de nós mesmos quando vivemos em sociedade, e esta não pode se ausentar da culpa em um julgamento.
Uma história famosa, que não se sabe ser lenda, a respeito d'uma experiência sobre cultura utilizando cinco macacos em uma jaula e um cacho de banana no alto de uma escada, quando um macaco subia para pegar as bananas os outros eram alvejados com jato d’água. Em pouco tempo eles perceberam a ligação entre a banana e o jato d’água e sempre que um tentava subir a escada os outros o surravam. Assim, os cientistas trocaram um dos macacos da jaula, e logo o novato tentou subir a escada foi espancado e não mais tentou. Trocaram outro macaco, que tentou subir a escada de imediato e foi espancado pelos outros, bem como pelo novato que participou com entusiasmo mesmo sem saber porque apanhou e porque estava batendo. Assim sucessivamente até trocar todos os cinco, o comportamento se arraigou e nenhum deles subia para pegar a banana, sem mesmo nunca terem visto o jato d’água. Se pudéssemos perguntar para um deles o porquê de tal comportamento talvez a resposta fosse parecida com a nossa e a cerveja: “Não sei, mas as coisas sempre foram assim por aqui.” Portanto, há uma estrutura ideológica arraigada pelos meandros sociais a compor subjetividade, parte oriunda de uma sociedade do espetáculo – expressão homônima à obra de Guy Debord -, onde a verdade é um momento do falso. Em vista disso, há de se condenar a estrutura, sobretudo, condenar um indivíduo à privação da liberdade é, antes, condenar a todos nós.
Na alçada histórica, o que pude acompanhar até aqui, há uma relação tímida entre o Direito e a moral, como a teoria do mínimo ético, quando este deveria ser um casamento. Há de se observar que o pensado até o momento e tomado como influência a nossa constituição ao olhar da napoleônica - como explica o professor Dr. Dalmo de Abreu Dallari no curso de formação de magistrados no Rio de Janeiro - de se colocar à frente a razão e mitigar a emoção é passível de questionamento, pois criando uma instituição inteira de razão, cria-se uma instituição para uma espécie que não a humana, mas de máquinas; e criando uma instituição inteira de emoção, o mesmo procede, mas de animais irracionais. O que nos torna humanos está na interseção entre a razão e emoção, por esse ponto de vista, há uma relação de simbiose onde uma se alimenta da outra. Portanto, a ideia do Direito como interseção, análogo ao dualismo platônico, um corpo e uma psique, vai de encontro ao pensamento de Hans Kelsen em Teoria Pura do Direito onde se serve como base normativa, pois enquanto heterônomo se imiscui a qualidade subjetiva que nos torna humanos e possíveis de conviver em sociedade. Ou seja, a subjetividade toma parte em algo que não lhe diz respeito, outrora não compreendida quando sê-la fora devida. É indiscutível que a filosofia na qual constitui a sociedade é ineficaz, vivemos a desarmonia no nosso cotidiano, é comum o receio de ser assassinado ou roubado ao caminhar à noite pela rua e analiso essa ineficiência, dentre tantos vieses, também pelo viés consequente do desmantelamento da emoção e da tentativa de padronização do ser humano por costume social. Costume que se derrama por todas as partes, mesmo na faculdade onde 50 alunos passarão 5 anos respondendo às mesmas perguntas, com as mesmas respostas em provas como se todos fossem iguais e carregassem os mesmos recursos naturais.
Com a convicção de que toda afirmação exposta aqui teve causa apenas à estética textual, e a certeza de me encontrar no horizonte longínquo do longo caminho para sorver uma gota desse oceano do Direito. Sob a sabedoria dos senhores leitores que como o sol a nascer sobre o oceano ilumina todas as águas, caso o tema seja pertinente à vossa preferência, que tal discutirmos a respeito nos comentários?
Abraços,
Fabio Bottrel